Iemanjá, mãe do Brasil
A Prof. Dra. Teresinha Bernardo (PUC-SP) nos presenteia com um artigo profundo sobre a figura da mãe, sua importância no seio da família africana e afro-brasileira e sobre a força de Iemanjá como protetora e mãe de todos os brasileiros.
Os mitos transmitem um modo de pensar, um modo de ver o mundo. Essa visão de mundo é sempre coletiva e deve-se conservá-la, no sentido de haver um acordo do grupo em relação a ela. É devido a esse papel que analiso os mitos referentes às mulheres-deusas afro-brasileiras: Iemanjá, Oxum e Iansã. É claro que esse nome próprio tem a ver com a cultura criadora de determinado mito.
Na realidade, a narração que é mítica pode ser recontada, mais do que isso, pode ser traduzida em várias línguas, pois permanece o sentido original, o seu núcleo primitivo, devido às estruturas mentais semelhantes. Se entre o mito e a memória há uma relação privilegiada, as lembranças de Olga de Alaketu - cujas substâncias na maioria das vezes são mitológicas e das quais eu trato com afeto e saudades no livro “Negras, Mulheres e Mães”, recentemente relançado pela Editora Arole Cultural em edição revisada e atualizada - são decifradas e através delas tenho a possibilidade de captar a memória dessa mãe-de-santo de maneira ampliada, a memória divinizada.
Diferentemente da memória dos mortais, a divinizada tem um movimento que sai do presente, mas, quando vai ao passado, chega ao tempo das origens e, em vez de retomar ao presente, vai para o futuro e chega, finalmente, ao presente. É a memória que caracteriza o discurso dos profetas e dos poetas. Mas a sacerdotisa tem as duas memórias: a dos mortais e a divinizada.
Os mitos de Iemanjá e Oxum remetem essa análise para o universo feminino afro-brasileiro: mais precisamente, para as relações de gênero. Assim, a identidade sexual, os comportamentos referentes entre o homem e a mulher encontram-se enraizados historicamente, como reflexos de sistemas culturais específicos.
É nessa perspectiva que devem ser entendidas as mulheres iorubás e o desenvolvimento do sentimento materno entre as africanas. Em outras palavras, esse sentimento não é o instinto. Esse aspecto, o do sentimento materno, envolve uma proteção sem limites entre as africanas, fazendo com que se transformem em feiticeiras para salvaguardar a si mesmas e a seus filhos.
As características de proteção e afeto maternos intensos, acrescidas à característica de provedora, que a mulher africana e afrodescendente também detém, possibilitam a vivência da matrifocalidade na sociedade brasileira. No entanto, todos esses aspectos culturais, socioeconômicos e históricos listados não explicam somente a ocorrência de um tipo de família, mas dão indícios fundamentais para o entendimento do fato peculiar de a mulher surgir como a detentora do poder religioso, a grande sacerdotisa do Candomblé.
Para iluminar ainda melhor este fato - o da chefia feminina -, torna-se importante destacar alguns fatores que foram incisivos para que a mulher viesse a ocupar o ápice da hierarquia religiosa, além dos outros, que foram listados no trajeto feminino da África para o Brasil. As mulheres africanas pertencentes às etnias fons e iorubás exerceram em seus respectivos reinos um poder político importante. É claro que no presente da escravidão esse poder teve que ser resinificado. Na realidade, é totalmente contraditório com a situação de escravo o exercício de qualquer poder no plano do real.
Outro aspecto que deve ser destacado para iluminar o fato de a mulher vir a ser a sacerdotisa-chefe do Candomblé diz respeito à densidade do sentimento materno na africana. Esse sentimento, por sua vez, tem muito a ver com a noção de Terra-Mãe, comentada por Morin:
“A Terra-Mãe como metáfora só virá a florescer em toda a sua extensão nas civilizações agrárias, já históricas, o trabalhador Anteu colhe sua força no contato com a terra, sua matriz e horizonte, simbolizada na Grande Deusa (...) onde jazem seus antepassados, onde ele se julga fixado desde sempre. Com esta fixação ao solo, virá impor-se a magia da terra natal, que nos faz renascer porque é nossa mãe (...) É bem conhecida a dor do banido grego ou romano que não terá ninguém que lhe continue o culto como ficará separado para sempre da Terra-Mãe.” (1988, p. 114)
Mas, além de o africano não permanecer na sua terra de origem, defrontou-se com a escravidão. Assim, se no plano do real a situação não valia a pena ser vivida, devia existir compensação. É assim que no solo brasileiro frutificou o Candomblé, a terra-mãe como metáfora para os africanos e seus descendentes. Se o Candomblé representa a terra-mãe, que, por sua vez, possui os seus significados ligados ao feminino, essa expressão religiosa, ao representá-la, ganha todas as suas significações. É nesse sentido que a grande sacerdotisa do Candomblé é chamada de mãe-de-santo. Essa denominação não é casual, Jung afirma:
“É a mãe que providencia calor, proteção, alimento, é também a lareira, a caverna ou cabana protetora e a plantação em volta. A mãe é também a roça fértil e o seu filho é o grão divino, o irmão e amigo dos homens, a mãe é a vaca leiteira e o rebanho.” (1993, p. 39)
Na verdade, Jung está pontuando as características do arquétipo da mãe, no qual estão incluídos sentimentos que, nas africanas e suas descendentes, foram tão intensificados a ponto de levar essas mulheres a se tomarem feiticeiras para proteção de seus filhos. A possível ampliação desses sentimentos foi uma das causas que tornou plausível a mulher viver a matrifocalidade, tanto na família consanguínea, como na de santo.
Na Nigéria, Iemanjá mora em Abeokuta, no Rio Ogum. É a mãe de todos os Orixás, não necessitando de um Orixá masculino complementar. No Brasil, Iemanjá representa as águas salgadas, o mar; e é sincretizada com Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Rosário. Deixou o rio para sua filha e, assim, Oxum pode continuar a representar as águas doces, as águas claras; é dona dos riachos cristalinos, a natureza criadora. De um lado, a mãe é protetora, esta sempre por perto; de outro, o rio desemboca no mar. Assim, há uma relação de proximidade entre o mar e o rio; entre mãe e filha.
Tanto na África, quanto no Brasil, Iemanjá simboliza a maternidade. As esculturas mostram-na gravida, com os seios fartos. Sobre essa característica da deusa, existem mitos e lendas que narram a nossa mãe de maminhas chorosas. Nesse sincretismo destaca-se a imagem de mãe protagonizada por Iemanjá - a mãe da água, a mãe dos negros. Nos Candomblés de caboclo, ela se torna sereia: metade peixe, metade mulher, linda e de cabelos longos. Mas além de sereia, Iemanjá tem a imagem de bela mulher, cujo significado parece estar associado ao de mãe inacessível que se transmuta em mãe protetora. Tanto as representações de mãe distante, quanto as de mãe aconchegante encontram-se em todos os Candomblés da Bahia.
As análises dos sincretismos parecem apontar para a generalização da ideia de que a existência de crenças ligadas à água é universal. Pierre Verger e Armando Vallado pontuam que, na África, Iemanjárepresentava o Rio Ogum e que, na diáspora, transformou-se no mar. Se “(...) a água é a grande comunicadora mágica do homem no cosmo” (Morin, 1988, p. 119), essa metamorfose sofrida pela deusa diz respeito à comunicação; assim, representa a união do contingente africano que viveu a diáspora e seus descendentes que se encontram na África, nas Antilhas, no Brasil e nos Estados Unidos.
Jorge Amado, em 1935, também dedicou um belíssimo capítulo de Mar morto à grande deusa - “A Iemanjá dos cinco nomes”. Iemanjá é o verdadeiro nome da deusa, mas os canoeiros a chamam de Dona Janaína, os pretos a chamam por lnaié ou pedem para a Princesa de Arouca. As mulheres da vida, as casadas e as que esperam marido a chamam de Dona Maria. A deusa é o mar, é a mãe d’água, a dona do mar, temida e desejada; mãe e ao mesmo tempo esposa; furiosa e calma.
Iemanjá, a grande mãe dos brasileiros, é personagem de mitos, lendas, músicas e poesias. É cultuada nas praias brasileiras em diferentes datas: 2 de fevereiro, em Salvador; 8 de dezembro, na Praia Grande (São Paulo); 31 de dezembro, nas praias de quase todo o litoral brasileiro. Nos rituais que celebram Iemanjá, quase sempre a grande deusa é presenteada com objetos de beleza, como sabonete, pente, pó-de-arroz, talco, perfume, laços de fitas, ramalhete de flores. Tais presentes indicam que quem os recebe, além de feminina, é vaidosa.
No entanto, as águas profundas habitadas por Iemanjá não tem somente espumas que beijam lábios que esperam entreabertos. Elas têm outra substância real: as águas profundas, em sua imensidão, significam o inconsciente, mas também a consciência do eu, fruto de um aprofundamento para o mundo e para nós mesmos. É a vivência da intimidade simbolizada pelo mar. É Dona Maria, é Iemanjá. O aprofundamento para o mundo e para nós mesmos também caracteriza a maturidade. Mas o fato de Iemanjá deixar de representar o rio e se metamorfosear no mar parece ter a ver, também, com a substância mãe. Na África, o Rio Ogum já representava a mãe, o sentimento materno com sua proteção inigualável.
Se o oceano mama no rio é porque o rio representa a mãe, a mãe que alimenta, a mãe que nutre, a mãe africana. A mãe de que os africanos mais do que nunca careciam ao viver a diáspora. Essa maturidade materna que o mar representa implica viver a sua própria vida, ter a sua própria identidade e transmiti-la para seus descendentes.
Texto originalmente publicado em: https://www.diegodeoxossi.com.br/home/iemanja-mae-do-brasil